para Ivi
O chão da trilha em que entrei era recoberto de folhas de eucaliptos, que cobriam toda aquela grande faixa de terra. Enquanto olhava para as paredes de troncos que margeavam o caminho, ia avançando sobre o tapete de folhas, que era uma delícia de pisar com os pés descalços. O ar estava úmido, fresco e carregado do odor das árvores, que penetravam por baixo do meu vestido leve de algodão à cada passo, inflando, infundindo pelas costuras, envolvendo meu corpo já suado pela caminhada, com um perfume refrescantemente gelado.
Talvez tenha se passado um quarto de hora, ouvindo o suave farfalhar dos passos entre os sons da mata. Eram aves demarcando territórios, insetos zunindo sobre minha cabeça e o estalar dos troncos longos e afilados, sendo vergados pelo vento empurrando as altas copas. Já podia avistar a clareira que tanto gostava de visitar, surgindo da última curva do caminho em uma abertura cônica, tangenciando um semicírculo. Quem pudesse flutuar sobre o lugar veria um recorte no imenso tapete verde, na forma de uma gota perfeita.
Entrei no espaço aberto cheio de luz suave, ajuntando no alto da nuca meu cabelo longo que dançava até um pouco abaixo da cintura. O rabo de cabelo negro e liso dividi em três feixes, tecendo uma trança rápida. Terminando, olhei para o final da brilhante trança, deixando-a cair das mãos sem prender.
Cheguei à habitual cama de folhas secas em alguns passos saltados, entrecortando uma risada baixa e me deixei cair no chão que sabia ser macio. Deitei a nuca com cuidado num tronco caído não muito grosso, fazendo as vezes de travesseiro.
Agitei a frente do fino vestido para que o ar refrescasse o abdômen e o peito molhados de suor. Com os dedos empurrava um pouco de tecido embaixo dos seios, para absorver as gotas que dali escorreram pela barriga e desceram pelo interior das pernas. A pele alva dos meus braços estava avermelhada. Suspirei com os olhos fechados esticando a perna esquerda, empurrando uma porção de folhas com o calcanhar, enquanto segurava o dorso do pé direito brincando de girar uma pequena tornozeleira de conchas e sementes com o polegar.
A respiração foi diminuindo o ritmo, o calor do corpo já não vencia o frescor do lugar. Soltei a perna direita ao sabor da gravidade, formando outro amontoado de folhas. Abri as pálpebras e olhei a paliçada circular de troncos balançando, executando uma coreografia sincronizada, girando no sentido horário e anti-horário, como se uma mão gigantesca os estivesse retorcendo.
Recordei quando era ainda menina no interior da Grã-Bretanha, vivendo com minha avó. Comecei a cantar uma canção que aprendera com ela, numa língua antiga, repleta de vogais moduladas, cerimonial. Minha memória e corpo mergulharam no fluxo do tempo. Mesmo com os olhos abertos as imagens que registrava eram daquela época e lugar, cozinhando e costurando vestidos coloridos que aprendera a fazer com ela. Também me ensinou a reunir finos galhos, sementes ovais e flores dessecadas, trançadas entre nós feitos com tiras finas de couro. Aprendi composições complexas de materiais, ouvindo que não eram amuletos e sim chaves, para abrir e fechar certas coisas no mundo real.
Dentre as lembranças vivas se desenrolando dentro dos meus olhos, emergiu logo após um lento fechar e abrir de pálpebras, a tarde que sangrei pela primeira vez. Fui até minha avó e mostrei os dedos da mão molhados de vermelho. Ela sorriu em silêncio e me abraçou, andando comigo envolta em seus braços, me puxando para dentro da casa solitária às margens do campo de cevada da propriedade.
Me explicou o que significava aquele sangue, enquanto penteava meus cabelos. Tinha ficado um bom tempo imóvel na banheira, mergulhada até a base do nariz, olhando as diminutas ondas que minha respiração produzia na superfície da água quente.
- 'Te dirão que de agora em diante você é uma mulher. Não acredite, Ifig'.
- 'Considere um livro que começa a existir. Nesta noite escreverei com você apenas a primeira página. Todas as outras linhas registrando suas escolhas, risos e arrependimentos serão grafadas por você mesma. Quem te desejar aprenderá declamar os poemas que lapidou, e a amará com a própria vida'.
- 'Somente uma coisa é imutável, comum à todas as mulheres. Somos como portais e dentro de nós se agita uma multidão querendo dar passagem à esta realidade. Haverão momentos em que se sentirá confusa, e será sua multidão desejando, tendo certezas, ocultando dúvidas, sem perceber sua existência plural. Procure o consenso. Quando conseguir que todos e todas dentro de você respirem juntas, abram e fechem os olhos ao mesmo tempo, olhem a palma da mão e movam os dedos como uma só, terá encontrado o caminho que deve seguir'.
- 'Agora se levante um pouco, minha delicada flor'.
Num gesto rápido apanhou o lenço que havia esticado na cadeira onde eu estava sentada, e que recolhia o sangue que fluía de dentro de mim, colocando outro limpo em seu lugar. Virou-se e colocou na larga mesa de madeira em que estávamos, uma bandeja de borda trabalhada em metal avermelhado como o cobre. Sobre ela estavam reunidos diminutos copos, cheios de tinta de um colorido intenso. Havia também um pote fechado, uma pequena jarra de vidro com água, uma toalha branca. Sobre uma almofada de veludo verde, bordada com delicadas letras estavam duas peças de metal dourado como o ouro. Pareciam ferramentas. Uma delas era um longo lápis sextavado, com uma das pontas dobrada em ângulo reto e limada até a espessura de uma agulha. A outra peça era fina, cilíndrica e um pouco mais longa, com uma das pontas recoberta com couro grosso e macio.
Minha avó dobrou o lenço com meu sangue, até caber dentro da mão esquerda. Com a outra pegou a diminuta jarra e molhou o lenço, mantendo-o fechado dentro do punho. Do pote retirou uma porção de unguento e passou sobre o dorso da minha mão esquerda, subindo em movimentos circulares sobre o punho até o antebraço. Enquanto massageava a pele senti que ela foi ficando insensível, anestesiada. Sorrindo me disse:
- 'Chegou a hora de aprender uma canção que acompanha as mulheres que vieram antes de nós, e que seguirão as vierem por você. É longa mas não se preocupe, irei repetir até que possa cantá-la comigo, e por fim, entoá-la sozinha. Temos toda a noite, terá terminado quando o primeiro raio do sol recém-nascido tocar o telhado da casa'.
Dito isso colocou a almofada na mesa e acomodou minha mão esquerda sobre ela, sentindo na palma o bordado de letras e palavras douradas em uma língua que nunca vira, entrelaçadas por filigranas. Toquei a pele insensível com os dedos da mão direita. Minha avó começou a canção. Com o rosto alegre levantou o punho que mantinha o lenço. Pulsando os dedos fez gotejar sobre as tintas a mistura do meu sangue e água. Deixou o lenço avermelhado sobre a bandeja e apanhou a ferramenta cilíndrica dourada, misturando suavemente o sangue às tintas com a ponta sem o couro, limpando-a com a toalha entre as cores. A canção se tornara ritmada. Girou a ferramenta e a segurou como uma baqueta de tambor, com o couro na ponta. Tomou a outra e a ajustou entre os dedos da mão esquerda, de forma que ela
podia oscilar como uma gangorra, com a ponta em agulha para baixo. Mergulhou a agulha em uma das tintas e a posicionou sobre o dorso da minha mão, batendo levemente com a ponta de couro na altura da agulha, no ritmo da canção.
Com habilidade começou a tatuar o mesmo desenho que tinha na mão e antebraço esquerdo. Olhei maravilhada as letras surgindo sobre minha pele, entrelaçadas por delicadas linhas. De vez em quando ela passava a toalha com delicadeza, limpando o excesso de tinta e sangue que se acumulavam e visualizar o trajeto dos traços. Não me contive:
- 'É lindo e estranho vovó, mas também gostoso!'
Parou de cantar por alguns segundos, sem interromper o ritmo das batidas, nem o trabalho de tatuar:
- 'Assim verá acontecer na vida meu amor! A criação, a geração são permeadas de assombro e prazer. Há dor somente no nascer. Preste atenção na canção!'
Fechei os olhos e mergulhei na melodia, costurada pelas sílabas estranhas e pelas batidas no instrumento de tatuar. Haviam momentos alegres, outros monótonos e alguns trechos carregados de tristeza e dor. Depois de um tempo já podia acompanhar com algumas palavras minha avó. Mais um pouco frases inteiras. Já não sentia mais o tempo, o corpo, nem o respirar. Tudo era a canção. Minha língua se uniu à da minha avó, éramos duas bocas pronunciando as mesmas palavras, a mesma melodia, a mesma dor e alegria; e sem entender como, o mesmo sentido.
Aos poucos fui recobrando a consciência do que acontecia dentro de nossa casa, e percebi que somente minha voz mantinha a canção ressoando. Senti a ausência da batida ritmada nas ferramentas e abri os olhos. Minha avó havia adormecido, com a cabeça apoiada sobre os braços na mesa. A bandeja tinha sido retirada. Olhei para meu braço, e vi que as palavras sobre a mão e o desenho no antebraço estavam prontos. O sol entrava tímido pelas cortinas da janela. Parei de cantar.
Olhei as palavras no dorso de minha mão, que agora sabia ler: 'Escrevo para existir'. Da última letra se intercruzavam três linhas subindo pelo pulso, se integrando ao desenho belíssimo de uma fênix alçando vôo em meu antebraço. Era muito parecido com o da minha avó, mas suas cores eram mais vivas. Os olhos da ave faiscando em vermelho sanguíneo, o bico aberto em um grito estridente, projetando a fina língua azulada para fora; a feição cheia de energia e ira. Detalhadas penas repletas de cor e fogo que se projetava das asas, deixando um rastro de labaredas vermelhas e amareladas.
Havia lágrimas em meus olhos, mas nesse momento senti algo estranho. Num segundo percebi novamente minhas costas no chão recoberto de folhas e o nariz registrou o odor da mata. A imagem de minha avó dormindo e o braço com minha fênix se encheu de buracos, como um pergaminho que é incendiado, surgindo nas aberturas os troncos à minha volta e o céu azulado acima. Restou somente o agora e as lágrimas que ainda corriam pelos cantos dos olhos. Levantei num só impulso ficando sentada, abracando as pernas junto ao corpo.
- 'O que?', sussurrei.
Fiquei em pé num salto, movendo o corpo em círculo, sentindo a trança se desfazer no giro apressado. O que havia me trazido de volta para este tempo e lugar foi o silêncio. Nem a menor brisa penetrava entre os eucaliptos. Olhei para cima e as copas estavam absolutamente imóveis. As aves, os insetos, toda a vida em movimento havia desaparecido. Qualquer outra pessoa estaria aterrada, por perceber tamanha mudança no espaço à sua volta. Mas não fora a primeira vez que vi tal prodígio, na verdade estava sendo a segunda vez que vivenciava tal coisa, depois de sete anos: 'de novo...', disse.
Tomei o rumo de casa, adentrando na trilha cercada pelo corredor de troncos num passo decidido, e que no completo silêncio soava como um tambor de pele de carneiro, marcando uma intensa dança tribal. Bastaram alguns passos para que minha trança se desfizesse completamente, sentindo o longo cabelo ondulando às minhas costas. Em menos de dez minutos avistei a casa, cuja parede lateral e parte do telhado estavam recobertos de hera em flor. Antes de entrar, apanhei uma das pequeninas flores com os bulbos todos fechados, e aninhei em minha palma esquerda.
Atravessei o piso de madeira, indo direto até a pia da cozinha. Peguei um copo e enchi de água até a borda, colocando a flor com cuidado sobre a superfície transparente. Repousei o copo ao pé da janela e fiquei ao lado, olhando para fora, através das claras cortinas translúcidas. Sentia os nós da madeira e o encaixe das tábuas com os pés, absorta, olhando para a entrada do muro de pedra que demarcava o acesso à minha casa. Por que isso estava novamente acontecendo, me envolvendo em coisas que não procurei? Não sei ao certo quanto tempo se passou, mas quando olhei novamente para a flor, dois bulbos haviam se aberto, estendendo em coroa as minúsculas florações amarelas.
Estava entardecendo. Conferi se as lamparinas da casa estavam cheias de óleo e as acendi. Retirei do armário três taças baixas, entalhadas em pedra-sabão, colocando-as sobre a mesa do ambiente comum. Retornei para a janela e entreabrindo a cortina conferi que tudo permanecia em completo silêncio, inerte. 'Quem está vindo?', pensei.
Há alguns quilômetros dali um carro azul escuro, com o capô do motor marcado de manchas esbranquiçadas queimado de sol, sacolejava em uma estradinha de terra. Dentro, Lúcio dirigia com uma das mãos, enquanto a outra trazia para a boca o cigarro praticamente no fim. Sentiu a ponta dos dedos queimar no filtro ao sugar com força, enterrando a bituca no cinzeiro do painel. Estava lotado, acabando por empurrar para fora outras bitucas retorcidas, caindo sobre o tapete de borracha no chão do carro. Expirando a fumaça pela janela olhou para o outro lado, vendo o parceiro dormindo de lado com a cabeça apoiada na janela do passageiro. Tinha a boca aberta, boné puxado sobre os óculos escuros redondos. 'Como esse cara consegue dormir nessa montanha russa?', pensou. Pegou o boné pela aba e deu umas pancadas na cabeça do parceiro com ele: 'Acorda Feliz! Estamos chegando!'. Ele despertou num tranco, virando a cabeça de um lado pro outro, tossindo engasgado com saliva. 'Me dá meu boné!', vociferou recobrando a consciência. Lúcio lançou o boné girando em direção à janela aberta do passageiro e o parceiro o apanhou no ar com a mão direita, enterrando na cabeça num só movimento. Arreganhou os dentes dando uma risada sonora. Lúcio voltou a atenção para a estrada, com o rosto sem expressão.
- 'Muito bem, quem é essa bruxa que vamos visitar? Paixão antiga?', falou Felisberto, enquanto coçava com vigor a barba volumosa.
- 'Já te falei que ela não é bruxa!', retrucou Lúcio sem tirar os olhos da estrada. 'E pelo amor de Deus, se contenha quando estivermos lá. Ela pode nos deixar perto de encontrar o maluco que estamos procurando'.
- 'Vai sair caro? Te falo por que não tô afim de gastar a grana do bar pra fazer consulta com cigana!'. Lúcio virou o rosto sem expressão para ele, fixando o olhar gelado nos óculos pretos redondos.
- 'Tá, tá... respeito com a namoradinha', respondeu com um riso malicioso.
O olhar continuava fixo nele. Percebeu que seria sensato não continuar com a brincadeira, fechando a boca colocou o pé com tênis surrado no painel do carro. Lúcio ainda permaneceu encarando o colega por alguns segundos. Ao voltar os olhos para a estrada pôde ver o longo muro baixo de pedras que estava procurando. Parou o carro na entrada sem portão, girou a direção totalmente para a direita e acelerou um pouco, entrando pelo terreno, seguindo em declive uns sessenta metros por uma trilha larga cercada de eucaliptos, que ia dar em uma grande abertura na mata, onde estava a casa. Desligou o motor, saindo do carro junto do parceiro, sendo envolvidos pela poeira fina avermelhada que o veículo levantara, e que estranhamente permanecia em suspenso, sem se mover. Ifig estava ainda olhando pelas cortinas entreabertas da janela, quando viu o carro apontar na entrada do terreno.
- 'São estes', as palavras escaparam entre os dentes.
Soltei as cortinas, fechando os olhos por um instante. 'Que seja rápido', pensei, coração apertado pela presença dos dois estranhos. Senti que traziam consigo algo pegajoso, doentio. Quando abri os olhos o carro já tinha parado frente à minha porta, e seus ocupantes saltaram ao mesmo tempo, em um movimento sincronizado. Abri a porta, me postando sob o umbral, olhando o carro e os homens envoltos na poeira pela ausência do vento. Um dos homens, que sabia ser quem mandava, aparentava ter uns 50 anos. Moreno com as laterais do cabelo negro começando a ficar grisalho. Era alto, barba por fazer, com um olhar parado e triste. O outro era bem mais jovem, uns 20 e poucos anos, ruivo e com uma espessa barba cor de fogo. Era mais baixo e tinha o riso de um sátiro no rosto, insidioso; óculos escuros redondos, boné marrom de couro. Senti por detrás das lentes negras seus olhos percorrendo a parte de baixo do meu corpo e minhas pernas, que deveriam estar aparecendo parcialmente pela abertura frontal do vestido. Encarei novamente o homem mais velho e falei, através da distância que nos separava:
- 'Você parece cansado'. Demorou um pouco e respondeu sem expressão no olhar:
- 'Você parece irritada'. 'Mas não importa, preciso da sua ajuda'.
Ficamos em silêncio por mais de um minuto, eu ainda decidindo se os convidaria a entrar. O homem mais velho me fitava diretamente nos olhos, sem se mover, e o mais jovem continuava a passear seu olhar pelo meu corpo, agora fixado no decote do vestido.
- 'Entrem', disse girando no calcanhar, andando para dentro de casa.
Os dois atravessaram a cortina de poeira e entraram, o mais jovem fechando a porta depois de ter passado. Falou com voz baixa perto do companheiro:
- 'Desde quando você é educadinho para entrar na casa das pessoas? Geralmente se apresenta com um pontapé na porta!', disse o jovem. O mais velho olhou para mim, e se voltando para o jovem, sussurrou:
- 'Se ela não nos tivesse convidado jamais teríamos passado pela porta', girou a cabeça e chamou a atenção do outro para o artefato de galhos trançados com tiras de couro, pendente por uma cunha no alto da porta. O jovem balançou a cabeça rindo, levantando o boné e coçando a nuca com a outra mão.
- 'Ah... certo, certo!'.
Tinha apanhado uma garrafa de conhaque e a segurava nas mãos. Coloquei-a no centro da mesa e me sentei em frente à minha taça, fazendo um sinal para que os dois também se sentassem. Enchi as taças, deixando a minha por último. Coloquei de volta a garrafa no centro da mesa, descansando as mãos sobre as pernas. O jovem se adiantou e bebeu, soltando um sopro de satisfação:
- 'Hum... bem melhor que suquinho de laranja', pegando a garrafa e se servindo novamente.
- 'É sempre quieto assim por aqui? Quando precisar dar uma relaxada, venho te visitar', disse secando o lábio superior com a ponta da língua.
Não tomei da minha taça, nem o homem mais velho, que ainda olhava diretamente nos meus olhos. Fiquei esperando falarem algo. Forçando calma na voz, disse:
- 'Me chamo Lúcio e este é meu parceiro Felisberto'. O jovem o atalhou:
- 'Por favor... Feliz!', com um sorriso zombeteiro. Lúcio continuou:
- 'Somos investigadores da polícia de São Paulo. Um colega me falou há alguns anos sobre você. Me fez prometer que somente deveria te procurar se todos os caminhos que eu tivesse tomado me levassem ao nada. Que este seria um encontro único, e então deveria estar certo que havia feito absolutamente tudo'. O jovem não perdeu a oportunidade de fazer graça:
- 'Não olhe para mim. Nunca tive problema pra arranjar mulher'. Lúcio permaneceu quieto, mas senti que estava prestes a socar o colega, ao baixar os olhos na direção do outro, que permanecia com um largo sorriso recostado na cadeira.
- 'O que você está trazendo colado ao peito e está com medo de me mostrar?', falei sentindo um pouco de vertigem. O medo do homem estava se tornando o meu, e seu desespero tocava a pele dos meus braços, como quem te agarra suplicando por ajuda. Ele desabotoou a camisa perto do pescoço e puxou de dentro uma pasta de papel cartonado cheia de folhas, parecendo um processo. Exitou, mas colocou a pasta sobre a mesa perto de mim.
- 'Estamos procurando o homem que fez essas coisas', olhando cansado para os papéis à minha frente.
Baixei os olhos para a pasta, estava com as bordas puídas, rasgadas em vários lugares. Tinha uma grande mancha circular escura perto do centro, o suor do homem. A capa era repleta de números que não entendia e outros parecendo de telefones, rabiscados às pressas com nomes acima. Bordas de páginas brotavam por todos os lados, algumas mais grossas parecendo fotografias, desarrumadas. Da pasta irradiava dor, escuridão, sangue e um grito contínuo sem início ou fim. Abri, folheando páginas com logotipos da polícia, texto técnico que não queria ler, até me deparar com uma fotografia registrando algo inimaginável, inumano. Fechei-a e empurrei de volta com força, até bater na taça de Lúcio, derrubando um pouco de conhaque sobre ela e sobre a mesa. Ele não se moveu para apará-la, nem limpá-la.
Eu estava respirando rápido, sentindo algo pegajoso e frio invadindo o ventre. O grito continuava ininterrupto em minha mente. Comecei a sentir um forte cheiro de queimado, ácido, impregnando a mucosa do meu nariz.
- 'Você certamente não sabe o que está me pedindo'. Tenho muitas vidas dentro de mim'. Precisei tomar um gole do conhaque para poder continuar. Tomei toda a taça, fazendo lacrimejar os olhos.
- 'Vivemos em paz, em acordo; por que eu traria um assassino para se tornar parte do que eu sou?'
Lúcio fechou os olhos numa calada expressão de dor, seu companheiro parou de sorrir me olhando agora com curiosidade. Ficamos em silêncio. Depois de um tempo, levantou os olhos:
- 'Ele não vai parar, não pode, não quer parar! E não posso impedi-lo. Tentei, mas não consigo! Ele vai continuar fazendo isso', colocando a palma sobre a pasta. Também tomou sua bebida, em apenas um gole. Seu parceiro olhou para ele e depois para mim, se levantando:
- 'Muito bem! Chegou a hora de fazer o que vocês bruxas, cartomantes ou sei lá como quer ser chamada, fazer o que sabem! Coloca na mesa uma toalha de veludo e espalhe aquelas cartas com desenhos de gente pendurada pelo pé, caveira segurando foice e do diabo com chifres tortos! Acende uns incensos e nos fale como encontrar esse puto! Pode ser que eu resolva abrir a carteira e deixe de tomar umas cervejas, se a dica for boa!'. Lúcio se levantou como um raio e agarrou o colega pelo pescoço. Me levantei também, esticando as mãos espalmadas:
- 'Nessa casa não haverá violência!'. Os homens se soltaram, caindo sentados em suas cadeiras, os braços pendendo soltos ao lado do corpo. 'É... a sempre triste mistura de desespero, frustração e testosterona!', pensei. Baixei as mãos e os homens voltaram a respirar. O mais velho ficou piscando sem entender o que havia acontecido, olhando para as mãos e pernas. O jovem ficou quieto um momento, depois retirou o boné da cabeça e os óculos escuros, colocando-os ao lado de sua taça. Me encarou com olhos que podia ver serem esverdeados, bem abertos e amedrontados. Permaneci em pé:
- 'Torno a dizer, vocês não tem idéia do que estão me pedindo. Na verdade não tem como saber'. Me senti triste e vaguei o olhar por minha casa, a mesa, os homens quietos, estacionando na janela. Percebi que já era noite. Nada do que estava acontecendo desde que voltei da clareira, o silêncio e a imobilidade que nos cercavam; esses dois homens impotentes se afogando na busca de um outro enlouquecido, significavam uma imposição. Se há algo que sempre fui senhora é da escolha.
- 'Tudo bem, vou ajudá-los'.
Nesse instante uma lufada de vento atravessou a casa e encheu as cortinas, fazendo com que se elevassem descrevendo dois arcos espelhados abertos, se recolhendo em seguida. Ao mesmo tempo os sons da mata retornaram, grilos, pássaros batendo asas apressadas, cantos noturnos. O som de galhos vibrando no vento, troncos rangendo, folhas sendo varridas à volta da casa e sobre o telhado.
- 'O que está acontecendo?', disse Lúcio. O contraste entre o silêncio e o retorno da normalidade o assustaram.
- 'Uma decisão foi tomada', falei enquanto me sentava. 'Tudo espera decisões'.
- 'No entanto, preciso que entenda que não saberei o que ele pensou ou pensa, suas memórias. A mente só existe ligada ao corpo. Posso apenas rever o que esteve diante dos seus olhos até hoje. Mas já te aviso, de forma alguma vou querer vê-lo cometendo esses crimes. Para isso não irei olhar. Não sei se isso te basta, mas é o que terá'.
- 'É muito mais do que sonhei conseguir. Obrigado', falou prontamente.
Seu colega apenas balançou a cabeça afirmativamente. Ele continuava amedrontado, que de certa forma era engraçado de ver, depois do macho jovenzinho ter-se escondido em algum lugar seguro e quente.
- 'A noite caiu, costuma esfriar. Tem lenha ao lado da lareira. Sabem como acender?'
Os dois se levantaram ao mesmo tempo, tão apressados que uma das cadeiras rodopiou para trás e a outra oscilou em duas pernas, antes de voltar para o lugar. Passaram por mim evitando meu olhar. Enquanto escutava o ruído deles acomodando a lenha recolhi as taças e a garrafa, secando o conhaque derramado com um guardanapo. O pouco que havia caído na pasta tinha sido absorvido e secado, ficando algumas manchas avermelhadas. Não queria tocar na pasta.
- 'Vai! Me dá logo o isqueiro Lúcio!'
- 'Calma! Tô terminando de espalhar a parafina nos papéis de baixo da pilha e nos galhos secos!'
Quando voltei já estavam abanando as primeiras brasas. Me sentei um pouco com o corpo virado para eles, as pernas cruzadas. Fiquei com as mãos juntas, passando o polegar sobre a tatuagem no dorso da mão, lendo as palavras que minha avó havia gravado, seguindo as linhas até fênix no antebraço. Quando dei por mim o fogo já estava totalmente aceso, um de cada lado da lareira me olhando, esperando um movimento meu. Levantei-me, pedi que eles se afastassem da lareira, viessem novamente para a mesa. Olhei para a pasta, apontando em sua direção:
- 'Sei que aqui tem algo que ele escreveu, me dê. Não quero ver nenhuma fotografia! Somente o papel'.
- 'Como você sabe que ele...', falou o jovem. Lúcio pegou a pasta olhando para o parceiro como quem achou ridícula a pergunta. No final dela haviam envelopes de plástico com lacre, com habilidade abriu um deles e me entregou uma folha de papel branco com gramatura mais grossa, muito parecido com o tipo de papel que eu uso para desenhar à carvão.
- 'Pode tocar como quiser, ele já foi periciado. Não tinha nenhuma digital, como em todos os outros. Este estava...'. Enquanto Lúcio ainda falava o interrompi:
- 'Não me interessa saber com quem estava e como! Isso não quero saber'.
Ele se calou, levantando as mãos num pedido de desculpas. O papel tinha uns doze por quinze centímetros e estava bem limpo. Teve o cuidado de escolher um dos bilhetes que não tinha manchas de sangue. Apesar de ter sido ríspida com ele, me senti agradecida pelo cuidado. Isso já estava sendo muito difícil, e me pesava saber o que viveria pelos próximos anos, construindo novamente o consenso dentro de mim. Uma decisão não é um ato mágico, há muito trabalho depois de tomá-la.
Virei o pequeno pedaço de papel e estava escrito nele à grafite ou carvão comprimido, duas linhas em letra de forma regular e alinhada:
'A lua em fogo pelas janelas,
Fez vapor a hora do não ser'
- 'Ele não dorme. Sabe que enlouqueceu', disse depois de ler. Iam dizer algo mas os interrompi:
- 'Não importa o que vejam ou o que ouçam, não devem se aproximar até que eu diga. Dei as costas para eles e me aproximei da lareira, sentindo o calor das chamas envolver meu corpo. Estava pronta. Segurei o papel contra a parede, comprimindo a palma da mão esquerda sobre o escrito. Olhei as palavras no dorso da mão e as declamei em voz alta, na língua que aprendera há muitos anos. Com o olhar fixo vi a pele debaixo das letras inchando, como se a tatuagem estivesse sendo feita novamente. O levantar da pele acompanhando o traçado crescia rapidamente, já subia pelas linhas do pulso.
Soltei o papel, que caiu rodopiando no chão de madeira. Em frente à lareira soltei os laços dos ombros e da cintura, que sustentavam meu vestido. Levantando os braços deixei que escorregasse pela pele, caindo aos meus pés. Escutei às minhas costas, baixinho:
- 'Ela tirou a roupa! Está...'
- 'Psss... Cala a boca Feliz!
Está começando. Fechei os olhos. As chamas das asas da fênix se acenderam e queimavam, e de uma forma que ainda me surpreende, senti ela começar a bater suas asas no meu antebraço, se movendo na pele. O bater das asas a impulsionou subindo meu braço, deixando em seu arrasto um desenho de labaredas que se afilava e retorcia, escrevendo sobre minha pele um longo texto com muitas linhas, na mesma língua que estava em minha mão, nas canções que aprendera e na minha alma.
O pássaro subiu pelo ombro e percorreu rápido o alto das costas por debaixo dos cabelos, alcançando meu braço direito, percorrendo toda sua extensão num giro em espiral. Senti mais intensa a dor de seu vôo mágico, ao cobrir a palma com a história que gravava em minha pele. Do braço cobriu todo o pescoço, fazendo um giro enquanto subia pela mandíbula até o alto da cabeça, descendo em seguida pelo meu rosto. Mordi os lábios de dor ao preencher minha face, o exterior e o interior das pálpebras. Gemi colocando as mãos sobre o rosto, ao deixar outra parte dessa história gravada no branco dos olhos.
Desceu reto passando por entre meus seios, que foram cobertos pelas chamas das asas, com palavras se formando em duas espirais espelhadas, terminando nos mamilos endurecidos e ardentes. Continuou a descida pelo ventre, desaparecendo nos pêlos entre as pernas, deixando um rastro de palavras, dor e prazer em meu sexo. Ressurgiu por entre as nádegas, indo primeiro escrever sobre a perna direita até a sola do pé, subindo a coxa e alcançando a perna esquerda. Abri momentaneamente os olhos e vi meus braços totalmente cobertos pela escrita. Baixei o olhar para também ver toda a frente do meu corpo gravada. Quando fechei novamente os olhos a fênix já estava cobrindo a cintura, subindo pelas minhas costas. Ela terminou de cobrir meu corpo, e somente em um impulso das asas subiu pelo meu ombro esquerdo e desceu pelo peito, parando sobre o coração com as asas abertas cobrindo meus seios. A história estava contada. Deslizou pelo ombro e voltou para o antebraço esquerdo, repousando em sua posição original.
Me ajoelhei e sentei sobre os pés com as pernas entreabertas, apoiei o corpo sobre as palmas postadas no chão à minha frente e me preparei para o que viria. A história tatuada desse homem enlouquecido lentamente desinchou, e foi penetrando as camadas mais profundas da pele, atravessando minha carne, penetrando os ossos, minhas entranhas, minha mente. Uma profusão de imagens em uma torrente caudalosa invadiram meus olhos. Tudo o que viu, e os passos que deu sobre a terra passaram vertiginosos diante de mim em segundos. Terminaram e pude ver novamente o escuro de minhas pálpebras fechadas. Estava exausta.
Minha casa estava silenciosa, imagino que os dois homens às minhas costas estavam aterrados com o que presenciaram. Como o outro visitante há anos passados, que me pediu ajuda. Há algo que minha avó não tinha ensinado ao dizer que somos portais. Pode ter ocultado, nunca saberei. Portas abertas deixam sair, assim como podem deixar entrar.
- 'Me ajudem a levantar, por favor'. Não conseguia ficar em pé.
Exitaram um pouco, mas em seguida vieram rápido, atropelando as cadeiras e a mesa. Lúcio me ajudou a levantar, segurando minhas mãos e me sustentando de pé com um braço em minha cintura. Eu cambaleava. O jovem pegou meu vestido no chão e ficou parado sem saber o que fazer.
- 'Coloque por cima! Nunca despiu uma mulher?', atalhou Lúcio.
Foi engraçado, mas aquele homenzinho todo cheio de malícia agora me olhava somente nos olhos, ajudando a me vestir, sem aproveitar para olhar meu corpo nú. Sorri com a mudança. Me levaram com delicadeza para uma das cadeiras. Lúcio levantou uma delas que havia caído, quando passaram apressados para me ajudar, e se sentaram à minha frente.
- 'Você quer algo? Um pouco de água?', falou o jovem.
- 'Agora vou querer um pouco daquele conhaque. Está na pia com as taças'.
Ele se levantou e foi buscar, enquanto eu amarrava novamente os nós desfeitos do vestido. Colocou diante de mim a taça pela metade. Bebi lentamente, segurando-a com as duas mãos, sentindo o calor do conhaque encher meu peito. Pedi mais um pouco e dessa vez ele a encheu. Tomei mais dois goles somente, sentindo o malte alcoólico invadir a boca e aquecer o rosto. Estava me recuperando, senti a força retornar aos braços. Recostada na cadeira olhei para eles.
- 'Como posso ajudar? O que querem saber? Não vou olhar os crimes, vocês sabem'.
- 'Pode dizer onde mora? Por onde anda? Qualquer coisa que ajude a encontrá-lo', falou Lúcio com voz pausada.
Olhava diretamente para eles. A mesa com os dois homens desapareceu, dando lugar aos pés de uma criança correndo descalços no barro, mãos pequenas abrindo espaço em um matagal alto... de noite tateando as paredes em uma casa escura, o rosto batendo de frente em um degrau de cimento e pela fresta de uma janela a luz da lua penetrava, iluminando mãozinhas pequenas recolhendo o sangue que gotejava... um homem imenso, quase mulato de bigodes grossos, parado diante de uma janela, olhando o sol sem piscar... imagens fora de foco, azuladas, quebradas pela água agitada e raios de luz dançando, vistas do fundo de uma piscina. Alguém mergulhou e dois braços surgiram por entre uma nuvem de bolhas... uma mulher com as unhas cravadas em uma mesa, lágrimas escorrendo pelo rosto tremendo de ódio, dentes à mostra... gotas de chuva pingando da aba de um boné, o cano de um fuzil sumindo debaixo do nariz, uma mão tremendo saindo de um casaco verde encharcado, descendo pelo lado da arma, até encaixar o polegar no gatilho.
Fechei e abri os olhos, vendo os dois homens à minha mesa se entreolhando:
- 'É penoso! Parece que a qualquer momento vai acontecer algo terrível!' Eu estava com medo.
- 'Um rosto em um reflexo, um nome em um documento, qualquer coisa! Lúcio falou ansioso.
Respirei e fechei demoradamente os olhos. Ao abrir estava vendo uma estrada vindo em minha direção, de dentro de um carro. Duas mãos grandes com sardas no dorso segurando o volante... dentro de uma multidão quase anoitecendo, abrindo espaço pelas pessoas sem olhar para os rostos. Passava por eles como se estivesse nadando em uma correnteza... ruas com carros e pessoas vistas de um ponto alto, através de muitas janelas... muitas multidões diferentes de noite, de dia... andando sobre trilhos de trem, com o olhar fixo onde os trilhos se encontram no horizonte... muitos trilhos diferentes, muitas estradas, muitas multidões, muitas janelas... uma profusão de paredes de quartos diferentes... o polegar passando por sobre as unhas roídas dos outros dedos... livros abertos perto do rosto com poemas em português, em inglês e alemão...
As imagens se enfileiravam cada vez mais velozes. Vertigem. Tinha a sensação de que iria cair, mesmo sabendo que estava sentada. De súbito a sucessão de cenas parou. Na traseira aberta de um carro as enormes mãos apanharam uma grossa corrente de ferro e um martelo, de dentro de um saco de pano... o martelo mais perto do rosto, uma das mãos esfregava a cabeça do martelo de um pó vermelho, ferruginoso. Meu estômago se contorceu. Piscando, voltei a ver dois rostos perto do meu. Baixei a cabeça para respirar, com os braços recostados na mesa.
- 'E então? Algum lugar? Uma placa? Alguma conta com um nome, uma assinatura num papel? Como ele escolhe as vítimas?!', falou Lúcio exasperado.
- 'Eu falei que não iria olhar para os assassinatos! Chega!' Estava me sentindo doente. Esse era o caminho que esses homens tinham escolhido, não o meu.
Agarrei minha taça com a mão espalmada e bati com ela na mesa, perto da garrafa, espirrando o resto da bebida pelos dedos. O jovem segurou minha mão com cuidado, retirando a taça debaixo dela. Continuou segurando minha mão e a enxugou suavemente com o guardanapo que estava na mesa. Por fim colocou um pouco de bebida na taça e a empurrou para perto, me olhando preocupado. Acho que consegui dar um meio sorriso.
- 'Não sei se algum dia conseguirão pegá-lo. Tantos quartos diferentes que não posso lembrar, muitas vezes passa a noite dentro do carro. Não achava ser possível, mas ele não dorme, nunca. Paga tudo em dinheiro. Desvia o olhar de todo reflexo. Vi seu rosto apenas criança, loirinho, se olhando no espelho. Olhar fixo, frio, breve. Tem mãos muito grandes com sardas até o antebraço, unhas roídas na carne. Dirige sem parar, entra num posto para abastecer e continua. Acho que o dia ou a noite não fazem diferença, nem o tempo'. Parei de falar para beber alguns goles do conhaque, olhando o líquido balançando no fundo ovalado entre minhas mãos. Tentei organizar a memória.
- 'Observa o movimento de ruas e pessoas de quartos em lugares altos. Hotéis? Fuma muito. Anda sempre onde tem gente apinhada, multidões mesmo. Mas é estranho, se move como se não fizesse parte dela, não olha para ninguém. Como se estivesse atravessando um milharal, vê a ondulação dos corpos em movimento e avança pelo fluxo. Desenha detalhadamente com grafite e carvão, imagens repletas de sombras, pessoas de costas. Outros desenhos parecem anotações de lugares, quartos, casas vistas de cima. Não consigo me lembrar de nenhuma placa nas estradas ou ruas onde dirige, ele mal olha para as coisas'.
- 'Ele também vai em alguns lugares sem pessoas. Anda em trilhos de trem por horas, com o olhar fixo na distância onde se perdem. Do alto de cachoeiras quase cola o rosto na lâmina d'água, olhando ela caindo até arrebentar nas pedras abaixo'. Enquanto falava, uma lembrança me incomodou:
- 'Eu tinha dito que posso rever o que este homem viu durante a vida até agora, mas não sua mente, o que pensava ou pensa. Mas há uma cena que se repete e que não posso explicar. É desconsertante, mas mesmo assim ele vai para esse lugar. Aliás, é o único lugar que revisita, sempre de noite'. Meus visitantes se debruçaram sobre a mesa.
- 'Ele anda sobre um imenso aro fechado de concreto, que flutua no ar. Depois de dar muitas voltas fica em pé na borda, por horas, bem longe do chão. Observa luzes que refletem no espelho d'água de uma represa gigantesca. As luzes vem do topo de prédios de uma cidade que está muito distante. Acredito que seja uma cidade grande, pois parece uma muralha de prédios'. Lúcio ficou em silêncio e depois deu de ombros.
- 'É um delírio, uma alucinação, Ifig. Esse cara é completamente louco'. Foi a primeira vez que ele disse o meu nome.
- 'A alucinação brota da mente, não dos olhos. Apesar de não saber como, ele de fato anda sobre essa coisa impossível', tentei explicar. Sabia que o que tinha para fazer por esses homens havia acabado. Parece que também entenderam, porque se levantaram, colocando as cadeiras com suavidade próximas da mesa. Lúcio recolheu a pasta e a colocou novamente dentro da camisa. O jovem pendurou os óculos escuros na gola da camiseta e o boné na cinto da calça.
- 'Não sei o que dizer. Na verdade nem sei ao certo o que aconteceu aqui, mas obrigado', falou Lúcio decerto confuso.
- 'Sim! Obrigado! O parceiro jovem seguiu a postura de seu chefe, mas senti que não queria ir embora. Me levantei, assentindo. Lúcio baixou o olhar.
- 'Podemos fazer algo por você?'
- 'Sim. Há sete anos passados o amigo que falou sobre mim veio aqui. Também procurava por alguém. Desde então uma menininha que ainda aprendia a andar passou a fazer parte de mim, como agora esse homem que procuram. Não nos veremos mais. Mas chegará o momento que irá dizer o que aconteceu essa noite para outro. Repita as condições que ouviu, é o que basta. Podem sair agora'.
Os acompanhei até a porta, abrindo-a para eles. Lúcio passou por mim, carregando o mesmo olhar cansado do primeiro momento que o vi. Quando o jovem passou, toquei seu braço com a ponta dos dedos e ele parou, se virando para mim com surpresa:
- 'Feliz. Esta porta sempre se abrirá para você, se trouxer algo mais do que os olhos na próxima vez que estiver aqui'. Ele deu um sorriso envergonhado e foi tomar seu lugar ao lado de Lúcio no carro. De alguma forma acho que começava a entender, a despertar. Esperei o carro passar pelo portão, levando a poeira que movera consigo. O vento levantou meu cabelo, cobrindo o rosto. Afastei os fios dos olhos com os dedos. Fiz um gesto e vi que eram muitas as mãos que se agitavam diante de mim.
- 'Vai demorar até voltarem a ser somente duas, não?, disse com um suspiro cansado.