Pensar sobre nosso interior muito se assemelha com aquele que fará uma viagem maravilhosa, para algum país exótico como a África, Tasmânia, Islândia, Dakar ou cordilheiras escarpadas e desertos de sal do Chile. Logo imaginamos, dado o lugar de visitação e o risco que um animal autóctone, arrastado do cotidiano de caça, sono e eventuais cópulas, ser levantado vigorosamente do solo, para manietado ser espremido contra uma suada, engordurada e sorridente bochexa do deslumbrado viajante. Logo será lançado ao chão, empreendendo uma fuga difícil, sem enxergar a própria toca, pelo disparo cegante do flash do invasor ao produzir a sagrada selfie, de sua relativa paz e existência anônimas.
Indagados igualmente, por nosso interior em seção de terapia, proposição verbalizada não raro, com intrigantes consoantes carregadas com um sopro dois pontos acima da fala cotidiana, meio retrato de tara, meio curiosidade: - "E o que você sentiu?"
Porém, já preparados para lidar com o ardil, ocultamos a viagem por escaninhos, que sabemos lá no fundo, não são muito bem iluminados. Têm diversas alturas, degraus, divisões sem qualquer indicação, nas quais, para sermos totalmente honestos, esquecemos completamente onde irão dar.
Porém soerguendo a fronte decidida, honesta. vamos descrevendo um interior com a maior cara e layout de banco ou financeira. Mesas espalhadas corretamente, atendendo poderosas indicações do Feng Shui. Janelas iluminadas, cortinas de tons agradáveis, carpetes que abafam passos e principalmente, os gerentes responsáveis por nossas memórias, atendendo, oferecendo suquinhos de caixinha, afofando enormes pufes para os terapêutas que nos acompanham nessa viagem se acomodarem. Sim, estes são aqueles que estatisticamente geram, produzem aquilo que ansiamos... muito mais que isso! Aqui cabe ser verdadeiro! Deixamos rolar o tesão de ouvir deste profissional: -"puxa, estamos indo bem, não? No carro, depois de nos despedirmo no portão, deixo para rápido manuseio no porta luvas, uma caixinha de lenços, para dar conta de enxugar o jorro orgiástico. Dou chauzinho da janela do carro e com a outra mão já vou me secando.
Encontros com terapêutas, leitores incautos, devem ser conduzidos com forte senso de direção, GPS com acuidade em centímetros e bússola de nível militar. Fazer terapia é uma arte, aprendida quase ao mesmo tempo que a esquecemos. Nem o Superior Tribunal de Justiça nos mete medo. Afinal de contas: Terapêutas! Os temos de baciada, até pobre pode ter! O que será que pensam quando deixamos a sessão?
Só sei que ao olharmos nossa casa, o bairro onde alugamos nossa casa ou compramos, as ruas que a cercam, nos damos conta, e é desagradável admitir, o caminho que percorremos e as calçadas que palmilhamos estão impregnadas de sujeira e imperfeições. Coisas fora de lugar, cores desgastadas, rachaduras em estruturas que deveriam ser eternas, e pessoas. Em especial desaprovação àquelas que infringem leis de trânsito, até as mais elementares. E pior, flagramos com frequência a turba esfaimada, que apesar de todos esforços do Estado de Bem Estar Social não consegue o mais simples, que qualquer cão, de qualquer raça, não conseguem praticar a tão sagrada espera pelo seu lugar na fila
Devo acrescentar, com tristeza, que para nosso desespero a noite nos lança impiedosa no mesmo lamaçal. O mundo dos sonhos é de caos, no qual não temos controle e injustamente, impingidos no corpo e consciência de personagens inadequados, sujos personagens com linguagem sem correção. Sonhar é viver uma Ópera Bufa!
Nela não andamos direito, caímos quando subimos em uma bicicleta, nem voar certo e sustentação nos é permitido executar, vivemos correndo de algo ou atrás de alguém. É um saco, pois invariavelmente escapam. Parece que fomos assistir uma peça do Zé Celso Martinez Correa, e de uma ora pra outra estamos debaixo das luzes do palco, falando um roteiro que não conhecemos, metidos numa roupa fora de tamanho e que insiste em escorregar da cintura, expondo nossa nudez. Ouso dizer que o Criador, numa brincadeira sem nenhuma graça, inventou a noite e o sono, com o intuito de despertarmos nos sonhos. Depois vem os neurologistas afirmarem que essas narrativas se dão em segundos, embora tenhamos vivido um dia inteiro no onírico.
Tudo bem, deixando de ser ranzinza, um tempo ruminando aquelas imagens desagradáveis, imagens que geram medo, desgosto muitas vezes, nojo porque corrompem o ideal de perfeição que ansiamos. Em algum momento, prestamos atenção, ou nos lembramos vagamente que são histórias que nós vivemos, com outros corpos, outras roupas, outros objetos.
A palavra de vai descrever a existência no onírico é: Exagero.
Lembramos de brinquedos velhos, poeira, coisas espalhadas pelo chão, roupas que não cabem em nós porque estão largas ou porque são velhas demais; repentinamente temos um objeto nas mãos, e pensamos: "- puxa, eu já tive algo assim, mas esse é bem melhor do que eu já tive, mais completo, mais perfeito. Pena que está quebrado e não funciona mais. Mas se pudesse, levaria todos para casa e os consertaria e faria funcionar novamente".
Comigo são os instrumentos musicais e brinquedos feitos manualmente, sempre sonho com instrumentos quebrados, harpas faltando cordas, pianos faltando teclas, violões maravilhosos no quais as cordas estão trocadas, tambores sem pele jogados com desleixo no chão, cheio de poeira. Partituras espalhadas, rasgadas, expalhadas como se o arquivo que as guardava, tivesse sido assassinado por um monstro, e tombado de lado espalhado todas aquelas músicas, como vísceras no chão.
Pego algumas e recordo ter tocado em concertos, agora vejo todas fora de ordem, formando entre outros objetos e poeira, diminutas poças musicais. Dá uma vontade louca de vir morar nesse lugar abandonado, para consertá-las. Só uma pessoa muito irresponsável e fútil, teria abandonado aquele tesouro de coisas maravilhosas! Instrumentos, brinquedos construídos manualmente, faltando rodas, faltando peças, faltando cordas. Bonecos que perderam seus olhos, tem pernas mas não há cordões que os tragam à vida
O sonho termina seu ciclo, sejam os segundos dos neurologistas, ou as horas dos sonhadores. Saio do quarto, meio cambaleando e sem registrar como, chego à porta de meu escritório. Uma compreensão dura, agressiva, cruel me atinge no estômago, como um soco recebido de surpresa.
É muito difícil assumir... fui eu que abandonei aquele
lugar de magia, possibilidades, realidade e felicidade. Uma lágrima
rompeu o assombro diante da simples porta, que olhado pela empoeirada
janela, somente mostra um diminuto cômodo. Um giro de chave e apenas um
passo me levou de volta, para fazer reviver o mágico lugar, que aguardava em silêncio apenas minha volta.

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