quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Dos Dogmas - De Fora, nosso Dentro

Pensar sobre nosso interior muito se assemelha com aquele que fará uma viagem maravilhosa, para algum país exótico como a África, Tasmânia, Islândia, Dakar ou cordilheiras escarpadas e desertos de sal do Chile. Logo imaginamos, dado o lugar de visitação e o risco que um animal autóctone, arrastado do cotidiano de caça, sono e eventuais cópulas, ser levantado vigorosamente do solo, para manietado ser espremido contra uma suada, engordurada e sorridente bochexa do deslumbrado viajante. Logo será lançado ao chão, empreendendo uma fuga difícil, sem enxergar a própria toca, pelo disparo cegante do flash do invasor ao produzir a sagrada selfie, de sua relativa paz e existência anônimas.

Indagados igualmente, por nosso interior em seção de terapia, proposição verbalizada não raro, com intrigantes consoantes carregadas com um sopro dois pontos acima da fala cotidiana, meio retrato de tara, meio curiosidade: - "E o que você sentiu?"

Porém, já preparados para lidar com o ardil, ocultamos a viagem por escaninhos, que sabemos lá no fundo, não são muito bem iluminados. Têm diversas alturas, degraus, divisões sem qualquer indicação, nas quais, para sermos totalmente honestos, esquecemos completamente onde irão dar.

Porém soerguendo a fronte decidida, honesta. vamos descrevendo um interior com a maior cara e layout de banco ou financeira. Mesas espalhadas corretamente, atendendo poderosas indicações do Feng Shui. Janelas iluminadas, cortinas de tons agradáveis, carpetes que abafam passos e principalmente, os gerentes responsáveis por nossas memórias, atendendo, oferecendo suquinhos de caixinha, afofando enormes pufes para os terapêutas que nos acompanham nessa viagem se acomodarem. Sim, estes são aqueles que estatisticamente geram, produzem aquilo que ansiamos... muito mais que isso! Aqui cabe ser verdadeiro! Deixamos rolar o tesão de ouvir deste profissional: -"puxa, estamos indo bem, não? No carro, depois de nos despedirmo no portão, deixo para rápido manuseio no porta luvas, uma caixinha de lenços, para dar conta de enxugar o jorro orgiástico. Dou chauzinho da janela do carro e com a outra mão já vou me secando.

Encontros com terapêutas, leitores incautos, devem ser conduzidos com forte senso de direção, GPS com acuidade em centímetros e bússola de nível militar. Fazer terapia é uma arte, aprendida quase ao mesmo tempo que a esquecemos. Nem o Superior Tribunal de Justiça nos mete medo. Afinal de contas: Terapêutas! Os temos de baciada, até pobre pode ter! O que será que pensam quando deixamos a sessão?

Só sei que ao olharmos nossa casa, o bairro onde alugamos nossa casa ou compramos, as ruas que a cercam, nos damos conta, e é desagradável admitir, o caminho que percorremos e as calçadas que palmilhamos estão impregnadas de sujeira e imperfeições. Coisas fora de lugar, cores desgastadas, rachaduras em estruturas que deveriam ser eternas, e pessoas. Em especial desaprovação àquelas que infringem leis de trânsito, até as mais elementares. E pior, flagramos com frequência a turba esfaimada, que apesar de todos esforços do Estado de Bem Estar Social não consegue o mais simples, que qualquer cão, de qualquer raça, não conseguem praticar a tão sagrada espera pelo seu lugar na fila

Devo acrescentar, com tristeza, que para nosso desespero a noite nos lança impiedosa no mesmo lamaçal. O mundo dos sonhos é de caos, no qual não temos controle e injustamente, impingidos no corpo e consciência de personagens inadequados, sujos personagens com linguagem sem correção. Sonhar é viver uma Ópera Bufa!

Nela não andamos direito, caímos quando subimos em uma bicicleta, nem voar certo e sustentação nos é permitido executar, vivemos correndo de algo ou atrás de alguém. É um saco, pois invariavelmente escapam. Parece que fomos assistir uma peça do Zé Celso Martinez Correa, e de uma ora pra outra estamos debaixo das luzes do palco, falando um roteiro que não conhecemos, metidos numa roupa fora de tamanho e que insiste em escorregar da cintura, expondo nossa nudez. Ouso dizer que o Criador, numa brincadeira sem nenhuma graça, inventou a noite e o sono, com o intuito de despertarmos nos sonhos. Depois vem os neurologistas afirmarem que essas narrativas se dão em segundos, embora tenhamos vivido um dia inteiro no onírico.

Tudo bem, deixando de ser ranzinza, um tempo ruminando aquelas imagens desagradáveis, imagens que geram medo, desgosto muitas vezes, nojo porque corrompem o ideal de perfeição que ansiamos. Em algum momento, prestamos atenção, ou nos lembramos vagamente que são histórias que nós vivemos, com outros corpos, outras roupas, outros objetos.

A palavra de vai descrever a existência no onírico é: Exagero.

Lembramos de brinquedos velhos, poeira, coisas espalhadas pelo chão, roupas que não cabem em nós porque estão largas ou porque são velhas demais; repentinamente temos um objeto nas mãos, e pensamos: "- puxa, eu já tive algo assim, mas esse é bem melhor do que eu já tive, mais completo, mais perfeito. Pena que está quebrado e não funciona mais. Mas se pudesse, levaria todos para casa e os consertaria e faria funcionar novamente".

Comigo são os instrumentos musicais e brinquedos feitos manualmente, sempre sonho com instrumentos quebrados, harpas faltando cordas, pianos faltando teclas, violões maravilhosos no quais as cordas estão trocadas, tambores sem pele jogados com desleixo no chão, cheio de poeira. Partituras espalhadas, rasgadas, expalhadas como se o arquivo que as guardava, tivesse sido assassinado por um monstro, e tombado de lado espalhado todas aquelas músicas, como vísceras no chão.

Pego algumas e recordo ter tocado em concertos, agora vejo todas fora de ordem, formando entre outros objetos e poeira, diminutas poças musicais. Dá uma vontade louca de vir morar nesse lugar abandonado, para consertá-las. Só uma pessoa muito irresponsável e fútil, teria abandonado aquele tesouro de coisas maravilhosas! Instrumentos, brinquedos construídos manualmente, faltando rodas, faltando peças, faltando cordas. Bonecos que perderam seus olhos, tem pernas mas não há cordões que os tragam à vida

O sonho termina seu ciclo, sejam os segundos dos neurologistas, ou as horas dos sonhadores. Saio do quarto, meio cambaleando e sem registrar como, chego à porta de meu escritório. Uma compreensão dura, agressiva, cruel me atinge no estômago, como um soco recebido de surpresa. 

 

É muito difícil assumir...  fui eu que abandonei aquele lugar de magia, possibilidades, realidade e felicidade. Uma lágrima rompeu o assombro diante da simples porta, que olhado pela empoeirada janela, somente mostra um diminuto cômodo. Um giro de chave e apenas um passo me levou de volta, para fazer reviver o mágico lugar, que aguardava em silêncio  apenas minha volta.

 


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Dos Dogmas - Solidão


Para a amiga e futura colega, Maristela
 

Tenho uma amiga. Por hábito
Ou acordo aguçamos a audição 
No tenso silêncio entre palavras; 
Inúmeros gestos inacabados que 
Perdem o sentido, frenando no ar
Pelas importantes palavras, que 
Saltam do Léxico, como pedras 
Marmoreadas, se lançando acima
Dos nossos esquecidos sepulcros

Confessamos, duais pecados, ao
Fazermos saltar de umbrais,
Faíscas amatelo-ouro, iluminando
Nossos rostos também dessa cor,
Ao golpear com pedras-fogo as
Trancas tenazmemte afixadas em
Aferroadas portas sagradas, que
Protegem, dizem, a Felicidade.
Bem, fugimos com risos, tomando
Austos de fôlego renovados, à
Semelhança da fuga de portas
que tocamos alheias campainhas, 
Seguidas de fuga, alvo irresistível
De infantil brinquedo. Acaso
Seriam semelhantes felicidades?

Acumulamos descobertas, sensações 
Assemelhadas ao esquecimento, ou o 
Torpor criativo do vinho; que creio
Envergonhados, usarmos o pomposo,
Americanizado vocábulo: insigth.

Será eu somente, ou dois, serem
Impelidos a desvestir da magia e 
Riqueza, temas e lendas que ocupam 
Eternamente prelos da humanidade?
O tal do caminho do herói...
A liberdade do Artista...
A Família...
O poder da Inveja....
A Revolução Pacífica...
O homem que entende o que é ser
Mulher....

Numa noite, de frequente insônia, criei o seguinte cenário, para olhar alguém e tentar julgá-lo solitário. Estava diante de uma enorne entrada escavada em uma elíptica perfeita, com cerca de 10m na lagura maior,  e 4m  na altura menor. Quem fez aquela obra de engenharia, adornou sua borda com um extrato de verso, escavado na rocha, que lembro vagamente ser do argentino Borges. Dizia, comecando e terminando em três pontos: "...as vezes me sinto em pé diante do espelho, e pressinto o olhar do homem que me vê, embora o que tenha me restado do dia e noite, o sempre presente, amarelo dos Tigres..."

Não havia assinatura do autor, de forma que me fiei na memoria, de anoiteceres  com livros no colo, até adormecer.
Parado em seu limiar vi que foi escavada, girando em seu eixo num declive difícil de se conceber. Descia num ângulo que estimei em vertiginosos 60°. Era absolutamente escura, até cerca de seus 3/4 de quilômetros finais.
Era lisa e escorregadia, pela água que brotava copiosa em sonoras gotas de seu teto.
Tive a nítida impressão, que se o tempo pudesse ser uma dimensão visível à nossos olhos, eu  estaria sendo coberto por seu seu fluxo ininterrupto, mas que ali se acumulava, como em uma represa, por sua substância não ser capaz de infundir por aquela estranha e larga garganta.
Meus pés tentaram um passo ou dois, sentindo nas costas o frio que a escuridão total se fazia impor.
Ajustando os olhos pude perceber, apesar da distância, que o último quarto de quilômetro era bem iluminado; plano, havia gramado e poucas pessoas, que se dirigiam a uma árvore à direita do distante e iluminado quadro no fundo daquela incerta visão, mas até onde podia crer em meus olhos, verossímil.
Fiquei acocorado sobre os joelhos até não mais poder. Em tudo o que me intrigava, pude observar algo, que entre dezenas de coisas ainda que sobejavam minhas duvidas quanto Ser humano, pude observar com toda o escassez de visão clara e completa... Nenhuma daquelas "pessoas" se falava, se tocava, se reunia. Sequer embaixo da convidativa árvore, que ocupava a atenção daquele extrato de mundo. 
Posso estar errado, impactado pela raridade da experiência... mas acho que aquela distante janela, se abre para um mundo onde a solidão não é um problema.
O universo é grande demais para conter somente nossa forma de Ser. Seria um grande desperdício de espaço, disse certo cientista ou pensador.