Os olhos se moviam no ritmo das pessoas, andando atarefadas para algum lugar invisível, vindo da direita, esquerda, ora cortando obliquamente a calçada. Algumas passavam velozmente, deixando para trás o som decrescente de passos rápidos e bolsa chacoalhando, diminuindo até ser encoberto pelo ruído constante da rua, carros e gente deixando escapar pedaços da existência, rodopiando no ar até entrar na banca de jornais, onde fico sentado.
- Aeé?! pergunta pro seu pai o que ele faz com o dinheir...
- Judite! aloô!... ooô Judite!... vê pra mim se o Carlão saiu pra trabalhar... aquele safado me diss...
- Não obrigado não quero... não, tudo bem mas... agradeço mas no mom... olha eu tô tentando ser educad...
- Então cara, falei que não ia rolar... é tipo... não, não é com você... tipo, não tô preparada pra começ...
- Oi?... há! há! há!... ah sério?... há! há! há!... não, não sei... há! há!... olha, homem engraçado é assim, a mulher vai rindo, rindo, e quando vê já tá pelad...
Recortes, instantâneos lançados pela corrente caudalosa que fluía à minha volta. O espaço apertado de revistas e jornais flutua ancorado, na corrente variável dos dias, pescando vez ou outra sombras tremidas e esfumadas de vidas reais, paixões, desejos, mentiras. Raros viajantes ancoravam para rapidamente comprar um Estadão, revistas de jogos, balas ou revistinhas de sacanagem. As de sacanagem eram boas, sempre pediam também um jornal para colocar ela dentro. É importante balancear sonhos com realidade, não?
Na verdade era difícil fixar alguém na corrente. Um corte de cabelo colorido, uma blusa bonita, gravatas neutras, um sopro suave de perfume, um olhar triste. Os olhos tentam acompanhar, perscrutar por inteiro uma pessoa, mas o que pode reter são partes, pulsos ornados com pulseiras, meios semblantes preocupados, pernas torneadas rompendo saias agitadas, uma tatuagem delicada vindo à luz enquanto o cabelo é amarrado num rabo, um sorriso de surpresa para alguém que não posso ver.
Pensei ser possível construir uma pessoa com esses pedaços, afinal eram tantos recortes amontoados pelo tempo que imaginei encontrar similaridades suficientes para empilhar em uma pessoa real, inteira, que pudesse estar em pé diante de mim e conversar comigo quando volto para casa. Mas o projeto nunca deu certo. Existe algo de incompatível entre as partes recolhidas. Não é questão de tamanho, cor da pele, estilo, idade. O fato é que essa pessoa se monta, vestida convenientemente, cabelos, calçados, bolsa. Mas não fala, é inanimada, não adianta acrescentar qualquer uma das centenas de vozes guardadas, nada sai dos lábios cerrados e olhar esquisito.
Várias tentativas tiveram o mesmo fim, foram desmontadas com um leve movimento da mão, dissolvidas, cada parte caindo lentamente em seu escaninho. Tentei o processo com homens, mulheres, meninos, senhoras. Somente resultava um Golem congelado, sem afinidade com a vida. Sem imaginar onde estava falhando continuei a arquivar pedaços e mais pedaços, que o rio defronte trazia no escorrer turbilhonado do tempo.
Em uma tarde nublada, cheia de vento, tão comum quanto tantas outras que já se desdobraram, meus olhos acompanharam algo que me fez parar de respirar. Uma mulher, vestida com uma blusa de mangas baixas, e o olhar se fixou em seus ombros nus. Minha boca entreaberta, a mente exclamando: Que ombros lindos! Ao fim da frase em minha cabeça ela se foi, escapando pelo lado direito do meu campo de visão.
Fiquei por um tempo parado, ainda incerto de continuar respirando. Que ombros lindos! A mente somente tinha espaço para essa visão, se formando a certeza que aqueles ombros jamais poderiam compor outro projeto, jamais se articulariam com nada que estivesse guardado ou que viesse a ser recolhido do fluxo que me envolvia. Durante o resto do dia fiquei atento às pessoas que passavam. Se ela foi em uma direção, pode ser que retorne pelo mesmo caminho. Agora meu olhar desprezava qualquer outra coisa que não fosse aqueles ombros, aquela mulher. Até o fim do dia ela não retornou.
Noite de insônia, sendo atravessado por aquele momento, multiplicado tantas vezes quanto eram as estrelas que entravam pela janela do quarto. Ao amanhecer abri a banca uma hora mais cedo e comecei minha busca. Um eventual transeunte que parava para comprar algo me deixava enregelado, pelo medo de perder a passagem dela. Atendia rapidamente, com os olhos rabiscando rápido por trás do cliente dizendo: Bom dia! Bom dia!
Passaram-se semanas, e numa manhã cheia de sol ela reapareceu pelo lado esquerdo. Os ombros estavam cobertos por uma bonita blusa vermelha e pude ver seus cabelos negros, lisos, cortados pouco abaixo dos ombros. Fui seguindo atento, enquanto eles balançavam brincando com alguns enfeites de metal, no alto das costas da blusa. Desapareceu pelo lado direito, rente à parede da calçada. Dessa vez fechei os olhos, enquanto a respiração tentava voltar ao normal. Já tinha um pouco mais dela. Sabia que era muito pouco provável vê-la novamente no mesmo dia, mas foi impossível deixar de procurar naquela multidão, comprimida pelo funil de calçada diante de mim, outra visão daquela mulher. Pressenti o que me esperava. Noites sem dormir e estrelas contando a lembrança repetida desses momentos.
Seguiram-se vários meses e outros encontros irregulares, mas depois de um tempo, que não pude contar, já tinha comigo seu rosto corado, quase avermelhado, os labios delicados guardando um sorriso discreto, místico. Olhos cheios de vida e negros cabelos, envolvendo seu alvo pescoço, que atrai o olhar para o colo magnífico, e os ombros encimando a beleza ímpar, enebriante daquela mulher. Capturara também os braços nus e mãos delicadas, que descreviam sua dança flutuante entre os passos, traçando ritmados arcos à volta da cintura sedutora, e a maravilhosa sinuosidade do alto das coxas. As pernas mais que lindas, apaixonantes, por vezes se apresentavam por entre aberturas da leve saia, como a atriz tomada pela energia da persona, entra resoluta para a luz do palco, rompendo as cortinas e encara sua plateia. Seus pés graciosos, delicados, bem cuidados nas sandálias, tocando o chão com leveza e se erguendo para o próximo passo afilados, seguros.
Faltava sua voz. E pela primeira vez dentro de mim, surgiu o desejo inquieto de saber seu nome, se assomando, tomando conta da vontade e dos espaços da mente. Foi de tal ordem que os recortes guardados por décadas se agitaram, saindo dos escaninhos do tempo, surgindo e logo evaporando em uma luz clara, da cor da parede branca defronte a banca de jornais. Fiquei olhando fixo para a parede. Depois de um tempo, não longo, percebi que somente restava a parede, sua superfície pintada recentemente e uma ou outra rachadura mal coberta, nada mais.
O tempo se alongou, aquietou. A multidão que cruzava meus olhos reavivou uma longínqua reminiscência. Era só gente andando, sons vindos da rua e pedaços de conversas sem significado. As noites em casa também ficaram silenciosas, as estrelas na janela não impuseram mais a contagem de infinitas lembranças. Os dias se sucediam como em uma ampulheta com o gargalo mais estreito. A areia do tempo se amontoava mais vagarosa. Numa tarde, um pouco antes de fechar a banca, vi a mulher que ocupava minha mente andando com uma amiga, bem juntas, ventava frio. Estavam rindo baixinho e pude escutar sua amiga:
- Ooô Lari, deixa de ser boba! Foi um elogio que ele te fez, aproveita! E não tem nada hav...
Lari... Lari... Larissa é claro! Já tenho seu nome. Só falta sua voz. Embora não estivesse mais tão certo, de que qualquer coisa que fosse uma parte pudesse ser suficiente. A normalidade do fluir do tempo me era estranha, sentir o desconforto e cansaço do banco alto onde fico o dia todo, a fome irrompendo em certos horários, o aborrecimento da falta de atividade. Depois de alguns dias acabei levando uma pequena caixa de som para ouvir música, e o dia ficou menos monótono, colorido pela beleza do piano, flugelhorns, contrabaixos e cello, desenhando melodias em espirais, o sotaque do jazz.
Num desses dias comuns, logo ao abrir a banca, estava abaixado arrumando as gavetas do velho balcão de madeira, quando ouvi:
- Oi! Bom dia!
Levantei-me rápido e olhei para a pessoa, que me encarava sorrindo. Era ela.
- O senhor sabe me dizer onde fica a Clínica Saint Patrick, aqui no Centro?
Em suspenso fixei meu olhar no dela, minha mente tinha sua imagem, seu nome, sua voz. Nesse momento senti em meu próprio corpo a tão comentada idéia, de que o todo é maior que a soma das partes.
- Oi? Tá tudo bem?
- Sim! Está tudo bem, desculpe. Tem momentos em que me perco nos pensamentos, como quem sonha. Quando me dou conta, não sei ao certo se sou um homem que sonha ser um jornaleiro, ou um jornaleiro que sonha ser um homem.
Ela assentiu lentamente, mantendo o sorriso.
- Entendo o que quer dizer. Tem um inglês que afirma sermos feitos da mesma matéria dos sonhos, então, pode ser que ele esteja certo, não?
Sorri para a linda mulher à minha frente, também assentindo.
- Suba duas quadras na direção da prefeitura, vire à direita, e mais alguns passos na mesma calçada verá a Clínica que está procurando.
Ela deu um sorriso aberto.
- Muito obrigada!
Já estava virando o corpo quando repentinamente se voltou para mim, elevou-se nos pés e colocando a cabeça para dentro da banca disse:
- É Bill Evans?
- Sim, respondi. O Concerto em Paris de 1979, a segunda edição.
Ela voltou para a calçada. Com largo sorriso disse:
- Adoro Bill Evans! Obrigada por mostrar como chegar onde devo ir.
Se virou e caminhou na direção que indiquei, enquanto mexia em algo dentro de sua bolsa. Coloquei o corpo fora da banca e fui seguindo seus passos, até confundir-se com a multidão. Sentei-me no banco. Fiquei estático durante alguns segundos, olhando para o movimento na calçada. Minha mão se levantou para a caixa de som, e aumentei um pouco o volume, para escutar o solo de contrabaixo do trio. Sorri, e à meia voz falei:
- Os lindos ombros de Larissa!
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