Assassinaram o sábio!
Ainda pude ver a última pedra atingindo o corpo inerte do velho, tingindo-a de vermelho sujo, a depositar-se junto às outras que ficaram tão avermelhadas quanto ela. Assim tudo se tornou pedra, púrpura e silêncio.
Esperavam temerosos que algo acontecesse, que os elementos se revoltassem e o mar tragasse à todos com ondas negras. Ou que as montanhas rolassem suas rochas e servissem à vingança. Mas tudo continuou pedra, púrpura e silêncio.
Arrojaram-se então sobre o Livro, arrancando-o dos dedos esfacelados do velho e gritando insanamente, tingindo também os seus pés de púrpura. Ergueram sobre as cabeças o Livro e gritaram: Agora a sabedoria é de todos! Agora a sabedoria é de todos! E foi-se a turba, deixando em seu lugar terror e vazio.
Aproximei-me com cuidado, para não tingir os joelhos de púrpura, e olhei com saudades a face disforme do sábio. Não sentia tristeza nem horror, apenas saudades da voz e da verdade que enebriavam minha alma. Tantos como eu saíam de suas casas, somente para encontrar o sábio, e pedir que ele abrisse o Livro e lesse para nós. Era como bater à porta do Criador.
Ele sorria, perguntava qual era nosso temor e abria o Livro, falando longa e pausadamente durante horas. Falava de Deus e nos sentíamos deuses. Falava da Verdade e nos sentíamos sábios. Falava da Esperança e já voltávamos para nossas casas como imortais. Não escolhia à quem falar, nem nunca interrompeu sua fala porque estivesse cansado ou sedento. Nunca era cedo demais, ou tarde demais. Nada havia que não soubesse ou mistério que deixasse de o ser, depois que ele falasse. Quem o olhava dizia: Lá vai o sábio e seu Livro.
Pensando bem, fora por causa do Livro que ele havia sido transformado em pedra , púrpura e silêncio. Com o passar dos anos, alguns começaram a desejar conhecer o seu Livro e pediam que ele o mostrasse. Mas com o mesmo sorriso com que falava dizia que não era possível para ninguém lê-lo, apenas ele. Insistiam com o sábio e este dava a mesma resposta. Como o temiam, nunca desrespeitaram sua vontade. Muitos anos se passaram no convívio do sábio. Mas parece que mesmo o medo envelhece e morre, pensei.
Voltei-me para onde todos haviam saído e passei a procurá-los, não demorando muito a encontrar o lugar onde se reuniram, depois do crime. Era um elevado largo à beira do penhasco. Encontrei seguindo as marcas dos pés da multidão, porém não havia ninguém alí. Somente o Livro. Estava sobre uma pedra larga como um altar, fechado. Procurei com meu olhar pela multidão mas todos haviam desaparecido. Senti-me corajoso e curioso e abri o Livro, olhando de vez em quando para ver se alguém aparecia.
Sua capa de couro grossa dobrou-se facilmente e pude ver seu interior.
Eram páginas de linho fino, brancas. Em branco. Estavam marcadas apenas pelas bordas, completamente puídas pelo constante folhear dos dedos. Fui virando as folhas com avidez e assombro, procurando por algo escrito. Finalmente encontrei, na última página.
Dizia lacônico, em antiga caligrafia: “Se pudéssemos encerrar a Verdade e a Sabedoria em tinta e folhas vazias, teria fracassado Deus em depositar Suas memórias no coração do ser humano”.
Fechei o Livro e atônito fui até a borda do penhasco. Olhei para o fundo.
Tudo era pedra, púrpura e silêncio.
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